REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU

Diploma:

Acórdão de uniformização de jurisprudência, de 1 de Julho de 2015

BO N.º:

30/2015

Publicado em:

2015.7.27

Página:

619-635

  • Não é possível a cumulação de pedidos prevista no artigo 113.º, n.º 3, do Codigo de Processo Administrativo Contencioso se para os respectivos pedidos forem competentes tribunais de grau hierárquico diverso, pelo que o Tribunal Administrativo não tem competência para conhecer do pedido, deduzido em acção sobre contratos administrativos, de anulação ou de declaração de nulidade ou inexistência jurídica de actos administrativos relativos a formação e execução do contrato, cujo julgamento em primeira instância cabe ao Tribunal de Segunda Instância.
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    Acórdão de uniformização de jurisprudência, de 1 de Julho de 2015

    NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

    1. Relatório

    O Senhor Chefe do Executivo da RAEM interpôs recurso do Acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância em 25 de Setembro de 2014 e no Processo n.º 601/2013 (acórdão recorrido), com fundamento em haver oposição deste Acórdão com o Acórdão do Tribunal de Última Instância, de 21 de Maio de 2003, no Processo n.º 4/2003 (acórdão fundamento).

    Constata-se nos presentes autos que a Companhia de Obras de Decoração Yut Hoi Limitada intentou, no Tribunal Administrativo e contra a Região Administrativa Especial de Macau (representada pelo Ministério Público) uma acção sobre contratos administrativos e apresentou, ao abrigo do disposto no n.º 3 do art.º 113.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, o pedido de anulação ou de declaração de nulidade do despacho proferido pelo Senhor Chefe do Executivo em 29 de Março de 2010 que indeferiu a reclamação por si apresentada, mantendo o despacho que aplicou à A. a multa diária de MOP$ 30.000,00 desde 6 de Março de 2009 até à conclusão das obras, pedindo que fosse declarado nulo ou anulável o acto administrativo em causa, bem como a condenação da Ré no pagamento da quantia no montante de MOP$6.928.817,00; e como pedido subsidiário, pretendeu a redução da multa aplicada e o pagamento da multa pela Companhia de Seguros China Taiping (Macau), S.A., na qualidade da Ré chamada a intervir no processo, uma vez que a responsabilidade de pagamento lhe foi transferida pela compra de seguros.

    Devidamente citado, o Chefe do Executivo da RAEM apresentou contestação, deduzindo excepção dilatória, invocando a incompetência do Tribunal Administrativo relativamente ao pedido formulado pela A. de anulação do acto administrativo.

    Conhecendo da questão de competência, o Exmo. Juiz do Tribunal Administrativo tomou decisão no sentido de julgar improcedente a excepção deduzida pela entidade recorrida, considerando competente o Tribunal Administrativo.

    Inconformado com a decisão, recorreu o Senhor Chefe do Executivo para o Tribunal de Segunda Instância, que decidiu negar provimento ao recurso, confirmando a decisão impugnada.

    Ainda inconformado, vem o Senhor Chefe do Executivo interpor recurso para o Tribunal de Última Instância, com fundamento em oposição de acórdãos, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões:

    1 - No Acórdão proferido no passado dia 25 de Setembro, o TSI decidiu que, embora o Tribunal Administrativo não disponha, em princípio, de competência para conhecer o recurso contencioso de um acto administrativo praticado pelo Chefe do Executivo, será competente para conhecer o pedido de anulação (leia-se: o recurso contencioso) desse acto, se o mesmo for deduzido não de modo autónomo mas em cumulação com o pedido principal deduzido numa acção sobre contrato administrativo, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 113.º do CPAC.

    2 - No acórdão proferido a 21 de Maio de 2003 no Processo n.º 4/2003, o TUI decidiu, de forma expressa e inequívoca, que, “para conhecer os referidos pedidos, é competente o Tribunal Administrativo para julgar a acção sobre contratos administrativos (...) e o Tribunal de Segunda Instância para julgar o recurso contencioso do acto administrativo, objecto de impugnação pela requerente, por ser praticado pelo Secretário (...)”.

    3 - Sobre a mesma questão fundamental de Direito, o acórdão do TUI proferido no Processo n.º 4/2003 e o acórdão recorrido perfilharam, expressamente e não apenas de modo implícito, soluções opostas, sem que entre o momento da prolação do acórdão-fundamento e do acórdão recorrido tenha havido qualquer alteração da regulamentação jurídica relevante.

    4 - O objecto do recurso contencioso — o despacho de 29 de Março de 2010 exarado pelo Chefe do Executivo da RAEM, que manteve a decisão de aplicação da multa à Companhia de Obras de Decoração Yut Hoi, Lda., no valor de onze milhões e duzentas e vinte mil patacas (MOP$11.220.000,00) — é um acto destacável praticado, nessa qualidade, pelo Chefe do Executivo da RAEM.

    5 - A matéria da organização, competências e funcionamento dos tribunais da RAEM é obrigatoriamente regulada por lei, nos termos do artigo 8.º, n.º 2 da Lei n.º 1/1999 (Lei de Reunificação).

    6 - Diz a Lei n.º 9/1999 (Lei de Bases da Organização Judiciária), que o tribunal competente para decidir o recurso contencioso de anulação de um acto administrativo praticado pelo ora Recorrente, quando o tenha exarado na qualidade de Chefe do Executivo da RAEM, é competente o TSI, nos termos do respectivo artigo 36.º, alínea 8), subalínea (1) ab initio.

    7 - E a conclusão anterior permanece válida ainda que se verifique, como no caso presente, uma cumulação de pedidos regulada pelo artigo 113.º, n.º 3 do CPAC, por ter sido deduzido um pedido de anulação de um acto administrativo numa acção sobre contratos administrativos, e de onde possa resultar um aparente conflito de competências, porquanto a referida norma regula em matéria de cumulação de pedidos mas não interfere com a questão da repartição da competência entre os diferentes tribunais.

    8 - O legislador do CPAC foi expresso sempre que quis referir a questão do tribunal competente para a apreciação dos pedidos cumulados. Fê-lo no artigo 24.º, no artigo 102.º e no artigo 107.º mas não o fez no n.º 3 do artigo 113.º.

    9 - No artigo 113.º o legislador do CPAC não se referiu à questão da competência porquanto a ela se não quis referir, pois pretendeu deixar a regulação da mesma para o regime geral decorrente do processo civil e aplicável por força do artigo 1.º do CPAC.

    10 - Admitindo que o artigo 24.º se afasta do regime geral do processo civil e que permite a cumulação mesmo nas situações em que os tribunais competentes para conhecer os pedidos cumulados são diversos, o seu alcance útil, em matéria de competência, é apenas o de permitir a um tribunal superior conhecer de pedidos para os quais, em princípio, não seria competente, ou seja, admite-se que o TSI, em recurso contencioso de actos administrativos para os quais seja competente, conheça de pedidos da competência do Tribunal Administrativo.

    11 - Mas no quadro da cumulação de pedidos permitida pelo artigo 24.º do CPAC não é possível ao Tribunal Administrativo conhecer de pedidos da competência do TSI.

    12 - No artigo 113.º do CPAC a situação é diversa, pois trata-se de uma acção que é sempre da competência do Tribunal Administrativo e não como no artigo 24.º em que, tratando-se de um recurso contencioso, a competência pode caber ao TSI.

    13 - Ao omitir qualquer referência à questão da competência no artigo 113.º, o legislador pretendeu subtrair ao Tribunal Administrativo a competência para conhecer de pedidos de anulação de actos praticados pelo Chefe do Executivo e pelos Secretários do Governo da RAEM, inviabilizando, nessa circunstância a cumulação de pedidos, por aplicação conjugada das normas dos artigos 391.º, n.º 1 e 65.º, n.º 1 do CPC ex vi artigo 1.º do CPAC.

    14 - A conveniência que poderá existir na cumulação de pedidos não é de molde a justificar uma tão flagrante derrogação das regras da competência em razão da hierarquia que decorrem da Lei de Bases da Organização Judiciária.

    Contra-alegando, apresentou a Companhia de Obras de Decoração Yut Hoi Limitada as seguintes conclusões:

    1. O Chefe do Executivo da RAEM, ora recorrente, inconformado com a decisão proferida pelo Tribunal de Segunda Instância que julgou improcedente a razão do litígio quanto à incompetência do Tribunal Administrativo invocada pela entidade recorrida, vem, nos termos dos art.os 149.º, n.º 2, 161.º, n.º 1, al. b) do CPAC, bem como do art.º 44.º, n.º 2, al. 2) da Lei n.º 9/1999 (Lei de Bases da Organização Judiciária), interpor o presente recurso, por considerar haver oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão n.º 4/2003 proferido em 21/5/2003 pelo Tribunal de Última Instância.

    2. Na realidade, o que pretende apresentar o recorrente no presente recurso, é um recurso relativo à competência. Mas nos termos do art.º 150.º, n.º 1, al. b) e c) do CPAC, não é admissível recurso ordinário das decisões que resolvam conflitos de competência e, dos acórdãos dos Tribunais de Segunda Instâncias que decidam em segundo grau de jurisdição.

    3. Segundo o sensu contrário do art.º 44.º, n.º 2, al. 4) da Lei n.º 9/1999 (Lei de Bases da Organização Judiciária), também não é admissível recurso dos acórdãos dos Tribunais de Segunda Instâncias que decidam em segundo grau de jurisdição.

    4. Além disso, nos termos do art.º 638.º, n.º 2 do CPC, aplicável por remissão do art.º 149.º, n.º 3 do CPAC, não é admitido recurso do acórdão do tribunal que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diverso fundamento, a decisão proferida na primeira instância. (vd. fls. 17 do acórdão recorrido)

    5. Tal como foi indicado pelo meritíssimo juiz relator do Tribunal de Segunda Instância do presente processo, no despacho a fls. 366v dos autos, que o fundamento jurídico em que se baseia o acórdão recorrido é o disposto no art.º 113.º, n.º 3 do CPAC, mas não o previsto no art.º 44.º, n.º 2, al. b) do mesmo código baseado pelo acórdão do Tribunal de Última Instância n.º 4/2003, tal como invocado pelo recorrente. Pelo que, não existe a situação de oposição e não surgem os pressupostos indicados no art.º 161.º do CPAC, não se deve interpor o presente recurso com fundamento de haver oposição entre os acórdãos.

    6. Na realidade, o primeiro pedido principal formulado pela recorrida (autora) é: “Declaração a não violação pela autora do contrato para a execução da empreitada da obra de remodelação do edifício administrativo da ala oeste do Instituto do Desporto celebrado entre a autora e a ré”. Ou seja, pede ao Tribunal se considerasse que a recorrida não violou o contrato administrativo, após ter apreciado a acção de contrato administrativo, devia proceder à respectiva declaração, de tal modo a declarar nula ou anulável a multa aplicada a ela pela ré, que está certamente implicada na interpretação das cláusulas do respectivo contrato administrativo, na determinação da sua validade e finalmente na resolução dos litígios provenientes da execução do respectivo contrato. Só assim se pode decidir se deve suportar as despesas das obras ou as despesas pelo aumento de obras, matérias essas constituem objecto processual da acção de contrato administrativo (art.º 113.º, n.º 1 do CPAC).

    7. E há que definir a concreta data de início da execução das obras, se o atraso, a data de recepção provisória e definitiva foram causados pela alteração das obras exigidas pela ré, mas tudo isso não é objecto do recurso contencioso e só a acção tem uma plena jurisdição.

    8. Segundo a notificação do Instituto do Desporto, a recorrida apresentou a reclamação dentro do prazo legal (vd. fls. 42, 54, 56 e os respectivos anexos). Pelo que, nos termos do art.º 113.º, n.º 3 do CPAC, os art.os 218.º e 221.º do D.L n.º 74/99/M, os art.os 65.º, n.os 1 e 2 e 68.º do D.L n.º 63/85/M, em conjugação do art.º 30.º, n.º 2, al. 3), subal. III) da Lei de Bases da Organização Judiciária, o Tribunal Administrativo tem competência absoluta para apreciar os pedidos indicados no presente recurso e na petição inicial.

    9. Além disso, segundo a notificação do Instituto do Desporto que rejeitou a reclamação, nela também se indicou que pode a autora, nos termos do art.º 219.º do D.L n.º 74/99/M, de 8 de Novembro, conjugado com o art.º 113.º e seguintes do CPAC, bem como o art.º 30.º da Lei n.º 9/1999 de 20 de Dezembro, dentro do prazo de 180 dias, intentar acção específica para argumentar a matéria quanto à reclamação. (vd. fls. 367 dos autos e documento anexo n.º 69 da petição inicial)

    10. O caso do acórdão do TUI n.º 4/2003 invocado na alegação pelo recorrente é diferente do presente processo. Naquele caso, a requerente interpôs junto do Tribunal de Segunda Instância e em cumulação a acção sobre contrato administrativo e o recurso contencioso. Por despacho do juiz do Tribunal Administrativo, foi rejeitado o recurso contencioso por incompetência do tribunal e indeferido liminarmente a petição por falta de personalidade judiciária da ré, nos termos do art.º 30.º, n.º 2, al. 3), subal. (3) da Lei de Bases da Organização Judiciária. Pelo que, o conflito de competência alegado só tem a ver com o recurso contencioso.1

    11. E no processo de recurso n.º 410/2012, o Tribunal de Segunda Instância, na apreciação de competência dos autos, também referiu expressamente que o caso do TUI n.º 4/2003 é diferente do presente, uma vez que o TUI invocou o disposto no art.º 44.º do Código de Processo Administrativo Contencioso quanto à possibilidade da cumulação em litígio, pois, evidentemente, os litígios provenientes daquele artigo pertencem ao recurso administrativo mas não à situação do presente caso.2

    12. Em 22/11/2012, o Tribunal de Segunda Instância, no processo de recurso n.º 410/2012, entendeu que nos autos é aplicável o art.º 24.º do CPAC, como preceito que rege a cumulação.3

    13. Na realidade, o Tribunal de Segunda Instância já proferiu acórdão sobre a questão dos autos relativa à competência, tendo julgado que a competência para o julgamento do presente caso é do Tribunal Administrativo. (vd. Acórdão do TSI n.º 410/2012 sobre o recurso de decisões jurisdicionais em matéria administrativa, fiscal e aduaneira, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, para todos os efeitos jurídicos)

    14. Assim sendo, dúvida não resta sobre a competência do Tribunal Administrativo para o julgamento do presente processo e a competência para julgamento de todos os pedidos nos autos deve ser exercida pelo Tribunal Administrativo que lhe compete apreciar o pedido principal da acção sobre o contrato administrativo.4

    ———
    1 Vd. acórdão do TUI n.º 4/2003 sobre o conflito de jurisdição e competência, fls. 9 (tradução)
    2 Vd. acórdão do TSI n.º 410/2012 sobre o recurso de decisões jurisdicionais em matéria administrativa, fiscal e aduaneira, fls. 12.
    3 Vd. acórdão do TSI n.º 410/2012 sobre o recurso de decisões jurisdicionais em matéria administrativa, fiscal e aduaneira, fls. 13 a 14.
    4 Vd. acórdão do TSI n.º 410/2012 sobre o recurso de decisões jurisdicionais em matéria administrativa, fiscal e aduaneira, fls. 13 a 15.

    E em representação da RAEM — R. e ora recorrida, o Ministério Público formulou as seguintes conclusões:

    1.ª- Para os efeitos consignados no n.º1 do art.º 161.º do CPAC, verifica-se a mesma questão fundamental de direito, por ser exactamente idêntica a natureza jurídica das questões solucionadas pelo Venerando TUI no Acórdão Fundamento e pelo TSI no Acórdão Recorrido.

    2.ª- A sensata solução preconizada pelo Venerando TUI no Acórdão Fundamento determina «É competente o Tribunal da Segunda Instância para julgar o recurso contencioso quando o acto impugnado seja praticado pelo Secretário».

    3.ª- A solução adoptada no Acórdão Recorrido traduz na decisão de competir ao TA conhecer do despacho do Chefe do Executivo.

    4.ª- Nesta medida, quanto à apontada mesma questão fundamental de direito, a solução do Acórdão Recorrido está na directa oposição à do Acórdão Fundamento.

    5.ª- À luz do preceito na alínea c) do n.º 1 do art.º 150.º do CPAC, não é susceptível de recurso ordinário para o Alto TUI o Acórdão Recorrido por ter sido emanado no processo do recurso jurisdicional interposto da sentença do TA.

    6.ª- Do Acórdão Fundamento até ao Acórdão Recorrido, não ocorreu alteração substancial da regulamentação jurídica — a alínea 8) do art.º 36.º da Lei n.º 9/1999 na redacção dada pela Lei n.º 9/2004 mantém inalterado o regime originário de competir ao TSI julgar recursos contenciosos, em primeira instância, dos actos administrativos praticados pelo Chefe do Executivo e pelos Secretários.

    7.ª- Deste modo, preenchem-se in casu todos os pressupostos processuais do recurso com fundamento em oposição de acórdãos.

    8.ª- Respeitante à aludida mesma questão fundamental de direito, a solução do Acórdão Recorrido está também na directa oposição à do Acórdão decretado pelo próprio TSI no seu Processo n.º 159/2014.

    9.ª- Esta nova oposição reforça a exigência da uniformização da jurisprudência para salvaguardar a coerência do ordenamento jurídico, bem como a certeza e segurança jurídicas.

    10.ª- Na nossa prisma, não resta margem para dúvida de que são sãs e acertadas as soluções propugnadas pelo Venerando TUI no mencionado Acórdão Fundamento e no douto Acórdão emanado pelo TSI no seu Processo n.º 159/2014.

    11.ª- Importa ter presente a advertência de que «O mesmo TSI, noutras ocasiões, implicitamente, acolheu tranquilamente a sua competência para o recurso contencioso em casos similares ao presente em que igualmente estavam em causa multas contratuais no quadro da execução de contratos públicos. Assim sucedeu com os Acórdãos de 11/07/2013, Proc. n.º 586/2012 e de 17/05/2012, Proc. n.º 101/2011.» (Acórdão do TSI no Processo n.º 159/2014)

    12.ª- Salvo sempre o elevado respeito, entendemos modestamente que o douto Acórdão Recorrido viola as disposições na subalínea 1) da alínea 8) do art.º 36.º da Lei n.º 9/1999 na redacção dada pela Lei n.º 9/2004, no n.º 3 do art.º 113.º do CPAC, e no n.º5 do art.º 99.º deste diploma legal.

    Por despacho da Juíza relatora do processo neste Tribunal, foi admitido o recurso interposto e entendeu-se verificada a oposição dos dois acórdãos sobre a mesma questão fundamental de direito, na ausência de alteração substancial da regulamentação jurídica sobre a matéria.

    2. Os factos

    O Acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:

    1. A Autora é uma sociedade limitada criada e registada, nos termos legais, na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau, sob o n.º 18856 SO, que desenvolve as seguintes actividades: obras de decoração interna e externa, fornecimento de materiais de construção e de mobiliário, bem como obras de construção.

    2. O Instituto do Desporto publicou no Boletim Oficial da R.A.E.M. n.º 28, II Série, de 9 de Julho de 2008, pp. 6825 a 6826, o anúncio referente ao “concurso público para arrematação da empreitada da Obra de Remodelação do Edifício Administrativo da Ala Oeste do Instituto do Desporto”.

    3. A Autora concorreu ao aludido concurso e foi-lhe adjudicada a obra. Em 21 de Novembro de 2008, a Autora celebrou o “Contrato de empreitada da Obra de remodelação do Edifício Administrativo da Ala Oeste do Instituto do Desporto”, constante de fls. 49 a 58 dos autos, com o presidente do Instituto do Desporto em que foram subdelegados os poderes para representar a R.A.E.M., por despacho do Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura n.º 121/2008, publicado no Boletim Oficial da R.A.E.M. n.º 43, II Série, de 22 de Outubro de 2008 (dando-se aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).

    4. Prevê-se no n.º 1 do art.º 3.º do aludido contrato: o preço total da adjudicação é de trinta e um milhões, quatrocentas e quarenta e oito mil e cento e quarenta e três patacas (MOP31.448.143,00).

    5. O n.º 2 do art.º 3.º prevê que o referido preço da adjudicação será pago em 4 prestações de acordo com as seguintes formas:

    (I) 1.ª prestação: quando o volume de trabalhos concluídos atinge vinte e cinco por cento (25%), será pago o montante de sete milhões, oitocentas e sessenta e duas mil e trinta e cinco patacas e setenta e cinco avos (MOP7.862.035,75) que correspondem a vinte e cinco por cento (25%) do preço total do contrato.

    (II) 2.ª prestação: quando o volume de trabalhos concluídos atinge cinquenta e cinco por cento (55%), será pago o montante de nove milhões, quatrocentas e trinta e quatro mil e quatrocentas e quarenta e duas patacas e noventa avos (MOP9.434.442,90) que correspondem a trinta por cento (30%) do preço total do contrato.

    (III) 3.ª prestação: quando o volume de trabalhos concluídos atinge oitenta por cento (80%), será pago o montante de sete milhões, oitocentas e sessenta e duas mil e trinta e cinco patacas e setenta e cinco avos (MOP7.862.035,75) que correspondem a vinte e cinco por cento (25%) do preço total do contrato.

    (IV) 4.ª prestação: após a recepção provisória da obra e quando o volume de trabalhos concluídos atinge cem por cento (100%), será pago o montante de seis milhões, duzentas e oitenta e nove mil e seiscentas e vinte e oito patacas e sessenta avos (MOP6.289.628,60) que correspondem a vinte por cento (20%) do preço total do contrato.

    6. Prevê-se no art.º 4.º do contrato: o prazo de execução da obra é contado a partir da data de consignação dos trabalhos, sendo a Parte B obrigada a concluir a obra em cento e quinze (115) dias.

    7. Prevê-se no n.º 2 do art.º 4.º: será aplicada a multa diária de trinta mil patacas (MOP30.000,00) à Parte B até término dos trabalhos ou resolução do contrato, caso esta não consiga concluir a obra no prazo estipulado no contrato, acrescido da prorrogação do prazo determinada pela Administração e tribunal.

    8. Prevê-se no n.º 3 do art.º 4.º: se, por culpa da Parte B, não for cumprido o prazo estipulado no contrato, das importâncias a pagar à mesma serão deduzidas as multas e despesas emergentes do atraso na obra.

    9. O arquitecto Yeung To Lai prestou serviços de estudos, de elaboração de projecto, de fiscalização e de assistência técnica na supramencionada obra de remodelação.

    10. Âmbito da obra:

    (1) Proposta base e trabalhos preparatórios;

    (2) Obras de demolição;

    (3) Obras de estrutura;

    (4) Obras de projecto arquitectónico;

    (5) Obras do sistema de fornecimento e drenagem de água;

    (6) Obras do sistema de energia eléctrica;

    (7) Obras do sistema de prevenção contra incêndios;

    (8) Sistema de ar condicionado e de ventilação;

    (9) Obras de paredes de cortina;

    (10) Mobiliário;

    (11) Obras de impermiabilização; e

    (12) Obras de limpeza das paredes exteriores.

    11. O supracitado contrato administrativo foi celebrado em 21 de Novembro de 2008, porém, conforme o 1º cronograma da obra, o prazo de execução da obra é contado a partir de 3 de Outubro de 2008 e a data do término da obra foi prevista em 25 de Janeiro de 2009, perfazendo um prazo global de execução da obra de 115 dias. O prazo e o projecto de execução da obra em apreço foram determinados pelo Instituto do Desporto, arquitecto Yeung To Lai e Autora.

    12. Em 10 de Novembro de 2008, à tarde, houve um acidente de trabalho no local de execução da obra e, em consequência, a Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais emitiu imediatamente a ordem de suspensão da obra. A obra só recomeçou em 16 de Dezembro de 2008, resultando a suspensão de execução da obra por 36 dias.

    13. Em 25 de Dezembro de 2008, o representante do Instituto do Desporto, engenheiro Lam Weng Cheong, comunicou verbalmente à Autora que era necessário proceder à alteração das divisões do interior do 3º andar, bem como lhe pediu que efectuasse a estimação do volume dos trabalhos concluídos no supramencionado lugar e elaborasse a proposta de preço em conformidade com o novo projecto de execução da obra.

    14. Em 27 de Dezembro de 2008, a Autora apresentou a proposta de preço das obras adicionais emergentes da alteração em apreço, no montante global de quatro milhões e cento e cinquenta mil patacas (MOP4.150.000,00).

    15. De 26 a 28 de Janeiro de 2009 houve 3 dias de feriado do Ano Novo Lunar. O Ano Novo Lunar é um feriado tradicionalmente importante para o sector das obras de remodelação e muitos trabalhadores costumam passar o Ano Novo Lunar na sua terra, pelo que a obra foi suspensa por 3 dias com o consentimento do Instituto do Desporto.

    16. Em 28 de Fevereiro e 1 de Março de 2009 (dias de chuva), no total de 2 dias, foi impossível a realização dos trabalhos ao ar livre, respeitantes ao revestimento em chapas de alumínio nas paredes exteriores.

    17. De 4 a 8 de Março de 2009 (dias de chuva), no total de 5 dias, foi impossível a realização dos trabalhos ao ar livre, respeitantes ao revestimento em chapas de alumínio nas paredes exteriores e aos esgotos periféricos.

    18. Em 31 de Março de 2009, o representante do Instituto do Desporto, engenheiro Lam Weng Cheong, o representante do arquitecto Yeung To Lai, arquitecto Ng Kit Ko, e o representante da Autora, Iam Wai Hon, discutiram no local de execução da obra sobre a alteração das divisões do 2º andar, de que resultou o acréscimo de 3 dias.

    19. Em 13 de Abril de 2009 (dia de chuva), no total de 1 dia, foi impossível a realização dos trabalhos de cobertura das paredes de cortina de vidro no exterior por plástico, de limpeza e de fixação do dístico da instalação.

    20. Em 19 de Junho de 2009, o Instituto do Desporto e o arquitecto Yeung To Lai procederam à vistoria e recepção provisórias da obra.

    21. De 7 a 9 de Agosto de 2009, o Instituto do Desporto realizou o Grande Prémio Mundial da FIVB na aludida instalação.

    22. Em 28 de Agosto de 2009, o Instituto do Desporto elaborou, sem ter concertado com a Autora, o “Auto de multa da Obra de Remodelação do Edifício Administrativo da Ala Oeste do Instituto do Desporto”, com o seguinte conteúdo fundamental:

    “À luz do disposto no n.º 1 do art.º 4º do Contrato de empreitada da Obra de remodelação do Edifício Administrativo da Ala Oeste do Instituto do Desporto (referido “contrato”), celebrado em 21 de Novembro de 2008 entre a R.A.E.M. e a Companhia de Obras de Decoração Yut Hoi, Lda., o prazo global de execução da obra estipulado no contrato é de cento e quinze (115) dias (desde 3 de Outubro de 2008 até 25 de Janeiro de 2009).

    Todavia, no decurso da obra, houve um acidente de trabalho relacionado com dois trabalhadores e, em consequência, por despacho proferido em 11 de Novembro de 2008 pelo Director dos Serviços para os Assuntos Laborais, foi ordenada a suspensão imediata da aludida obra, em seguida, por despacho do mesmo Director, foi autorizado o recomeço da obra em 16 de Dezembro de 2008, razão pela qual a obra foi suspensa por um período global de 36 dias.

    Devido a 36 dias de suspensão da obra, acrescidos de 3 dias de feriado do Ano Novo Lunar, a obra deveria ter sido concluída em 5 de Março de 2009 ou antes daquela data.

    Até esta data em que se lavrou o presente auto, a empreiteira, Companhia de Obras de Decoração Yut Hoi, Lda., ainda não concluiu a obra em causa, pelo que, nos termos do art.º 4º do referido contrato, por ter desrespeitado o prazo de execução da obra estabelecido no contrato, ser-lhe-á aplicada a multa diária de trinta mil patacas (MOP30.000,00), contada a partir de 6 de Março de 2009 até a data da conclusão definitiva da obra a determinar.

    Até a presente data, a quantia da multa é de cinco milhões e trezentas e dez mil patacas (MOP5.310.000,00), contada desde 6 de Março de 2009, no total de 177 dias, à multa diária de trinta mil patacas (MOP30.000,00). Tal quantia vai ser ainda acrescida das multas diárias de trinta mil patacas (MOP30.000,00) até integral e efectiva conclusão da obra mencionada no contrato, incluindo a instalação de mobílias e equipamentos, a calcular na conta final da adjudicação”. (Vide fls. 270 a 273 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido)

    23. Em 6 de Setembro de 2009, a Autora apresentou “a defesa do Auto de multa da Obra de Remodelação do Edifício Administrativo da Ala Oeste do Instituto do Desporto elaborado em 28 de Agosto de 2009”. (Vide fls. 274 a 281 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido)

    24. Em 9 de Outubro de 2009, o representante do arquitecto Yeung To Lai verificou no local de execução da obra a reparação dos itens da lista de reparação. Alguns itens não foram aceites, devendo ser reparados novamente, por isso, em 12 de Outubro de 2009, a Autora apresentou de novo o pedido de entrada no local de execução da obra ao Instituto do Desporto para proceder à respectiva reparação.

    25. No mesmo dia, ou seja, no dia 12 de Outubro de 2009, o Instituto do Desporto comunicou, por fax, à Autora a autorização da entrada da mesma no local de execução da obra no período de 15 a 23 de Outubro de 2009, para proceder novamente a reparação dos defeitos.

    26. Em 7 de Dezembro de 2009, a Autora concluiu a instalação de móveis da obra e comunicou ao Instituto do Desporto e ao arquitecto Yeung To Lai para que estes se deslocassem ao local de execução da obra no dia 9 de Dezembro de 2009, às 14H30, a fim de procederem à vistoria e recepção dos últimos móveis, bem como elaborarem auto de revisão e recepção de todas as obras.

    27. Antes do tempo de vistoria e recepção referido no ponto anterior, a Autora foi notificada do cancelamento da vistoria e recepção supramencionadas, pelo que, em 10 de Dezembro de 2009, esta pediu novamente ao Instituto do Desporto e ao arquitecto Yeung To Lai que designassem a data concreta para a vistoria e recepção.

    28. Em 14 de Dezembro de 2009, o arquitecto Yeung To Lai respondeu à Autora, dizendo que os trabalhos de reparação e limpeza não eram satisfatórios e pedindo-lhe que aperfeiçoasse essa situação.

    29. Em 19 de Janeiro de 2010, a Autora comunicou novamente ao Instituto do Desporto e ao arquitecto Yeung To Lai que tinha concluído a instalação dos móveis, pedindo-lhes que procedessem, com maior brevidade, à vistoria e recepção da obra.

    30. Contudo, o Instituto do Desporto só comunicou à Autora em 4 de Fevereiro de 2010 que iria realizar a vistoria e recepção em 26 de Fevereiro de 2010, pelas 10H00.

    31. Em 22 de Fevereiro de 2010, o Instituto do Desporto emitiu a notificação de “Obra de Remodelação do Edifício Administrativo da Ala Oeste do Instituto do Desporto — Multa por atraso na obra”, com o seguinte conteúdo principal:

    “Junto se remete o conteúdo do despacho de 12 de Fevereiro de 2010 da Sua Ex.ª o Chefe do Executivo: Devido ao atraso na conclusão da obra, determina-se a multa estipulada no n.º 2 do art.º 4º do contrato de empreitada. Face ao período de 6 de Março de 2009 a 26 de Novembro de 2009, aplica-se uma multa de sete milhões e novecentas e oitenta mil patacas (MOP7.980.000,00), à multa diária de trinta mil patacas (MOP30.000,00), mas não prejudica o cálculo das multas por atraso ulteriores à data supracitada” (anexo 54). (O aludido despacho da Sua Ex.ª o Chefe do Executivo constante de fls. 369 a 371 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido)

    32. Em 25 de Fevereiro de 2010, a Autora apresentou ao Instituto do Desporto a “a defesa do Auto de multa da Obra de Remodelação do Edifício Administrativo da Ala Oeste do Instituto do Desporto elaborado em 25 de Fevereiro de 2010”. (Vide fls. 372 a 378 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido)

    33. Só até 26 de Fevereiro de 2010, o Instituto do Desporto e o arquitecto Yeung To Lai é que enviaram pessoal ao local de execução da obra para procederem à vistoria e recepção e elaborarem o “Auto de vistoria e recepção provisória de parte dos trabalhos”, no qual se indicou:

    “Finda a vistoria da obra, averigua-se que apenas as partes da obra que não têm deficiência de execução é que estão em condições de serem provisoriamente recebidas, por conseguinte, nos termos do art.º 192º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 74/99/M, de 8 de Novembro, a empresa empreiteira deve concluir o trabalho de reparação de todas as deficiências de execução referidas em sete listas de vistoria em anexo, até 15 de Março de 2010”.

    (…)

    “Por força do art.º 192º, n.º 2 e art.º 193º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 74/99/M, de 8 de Novembro, declara-se neste auto que se recebem provisoriamente as partes da obra que não têm deficiência de execução”. (Vide fls. 379 a 381 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido)

    34. Em 9 de Março de 2010, a Autora apresentou ao Instituto do Desporto “a defesa que contesta a multa por atraso na Obra de Remodelação do Edifício Administrativo da Ala Oeste do Instituto do Desporto”. (Vide fls. 393 a 395 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido)

    35. Em 15 de Março de 2010, o Instituto do Desporto elaborou o “Auto de vistoria e recepção provisória dos trabalhos”, com o seguinte conteúdo principal:

    “Finda a nova vistoria da obra, averigua-se que, após a reparação, as partes da obra que tinham deficiência de execução, estão presentemente em condições de serem provisoriamente recebidas.

    Assim sendo, por ter sido concluído o trabalho, nos termos do art.º 193º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 74/99/M, de 8 de Novembro, declara-se neste auto que se realiza a recepção provisória da obra, cujo período de manutenção é de 2 anos, enquanto o período de manutenção das obras de impermiabilização é de 5 anos”. (Vide fls. 474 a 476 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido)

    36. Em 12 de Julho de 2010, por meio do ofício n.º DPED/353/2010 do Instituto do Desporto, a Autora foi notificada da conta final da obra. (Vide fls. 488 a 492 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido)

    37. O arquitecto Yeung To Lai apontou na carta n.º Ref: 08004--RL-20090318-019 dirigida ao Instituto do Desporto:

    “Nota 1: VO-05

    Conforme o art.º 1.3.2. do caderno de encargos: as divergências existentes entre os elementos do projecto que não sejam decididas pelo critério da compreensão legal, são resolvidas consoante as regras seguintes:

    (1) A posição da folha do projecto na obra

    (2) Lista de volume de obras

    (3) Memória descritiva e justificativa

    A empreiteira não levantou, no período de consulta do concurso, nenhuma questão sobre o projecto ou lista de volume de obras, nem apresentou R.F.I., no período de execução da obra, para solicitar a aclaração por parte da unidade do projecto, pelo que esta agência de arquitectura considera que os fundamentos apresentados pela empreiteira não são suficientes para suportarem o pedido de importâncias adicionais”.

    38. Na carta n.º 08004-RL-20090921-029, de 21 de Setembro de 2009, e, sobretudo, na carta n.º 08004-RL-20100107-036, de 31 de Dezembro de 2009, o arquitecto Yeung To Lai propôs a não aplicação da multa.

    39. Em 9 de Abril de 2010, a Autora recebeu a notificação de multa por atraso na “Obra de Remodelação do Edifício Administrativo da Ala Oeste do Instituto do Desporto”, com o seguinte conteúdo fundamental:

    “(…) Junto se remete o conteúdo do despacho de 29 de Março de 2010 de Sua Ex.ª o Chefe do Executivo, exarado na análise-proposta deste Instituto, em que se rejeitou a reclamação deduzida pela V. Ex.ª contra o despacho de 12 de Fevereiro de 2010.

    Deste modo, mantém-se a multa determinada no referido despacho de 12 de Fevereiro de 2010.

    Mais se notifica V. Ex.ª que a presente rejeição não prejudica a possibilidade de intentar, nos termos do art.º 29º do Decreto-Lei n.º 74/99/M, de 8 de Novembro, em conjugação com os artigos 113º e ss. do Código de Processo Administrativo Contencioso, e art.º 30º da Lei n.º 9/1999, de 20 de Dezembro, acção específica ao Tribunal Administrativo no prazo de 180 dias, com vista a discutir sobre a reclamação”. (O despacho do Chefe do Executivo constante de fls. 611 a 614 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido)

    40. Por despachos do Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura n.os 32/2008 e 103, publicados, respectivamente, no Boletim Oficial da R.A.E.M. n.os 16 e 35, II Série, de 16 de Abril de 2008 e 27 de Agosto de 2008, o arquitecto Yeung To Lai e o Réu celebraram contratos de prestação de serviços de estudos, de elaboração de projecto, de fiscalização e de assistência técnica na obra.

    41. Até o presente momento, o Réu ainda não pagou à Autora a 4ª prestação do preço da adjudicação, uma vez que: no entendimento do Réu, a Autora foi multada pela Sua Ex.ª o Chefe do Executivo por não ter cumprido o “prazo de execução da obra” previsto no contrato, tornando-se devedora do Réu, cujo objecto das duas dívidas é prestação pecuniária, nesta conformidade, nos termos do art.º 838º do Código Civil, o Réu decide livrar-se das duas dívidas por meio da “compensação”, e, como o montante da multa aplicada à Autora é superior ao valor global da “4ª prestação do preço da adjudicação”, após a compensação das duas dívidas, o Réu já não precisa de pagar o aludido preço da adjudicação à Autora.

    3. O direito

    3.1. A questão a resolver

    A questão suscitada reside em saber se o Tribunal Administrativo tem competência para conhecer do pedido de anulação ou de declaração de nulidade do acto administrativo praticado pelo Chefe do Executivo relativo à formação e execução do contrato administrativo, apresentado cumulativamente na acção sobre contrato administrativo.

    No Acórdão ora recorrido, de 25 de Setembro de 2014, o Tribunal de Segunda Instância pronunciou-se sobre a questão, entendendo que a competência para conhecer de todos os pedidos formulados na acção sobre contrato administrativo deve ser do Tribunal Administrativo ao qual compete conhecer o pedido principal daquela acção.

    Por sua vez e nos autos de conflito de competência do Tribunal de Última Instância n.º 4/2003, em que tanto o Tribunal de Segunda Instância como o Tribunal Administrativo se declararam incompetentes para conhecer o pedido de anulação do despacho do Secretário para a Segurança, formulado numa acção sobre contrato administrativo, e por Acórdão fundamento proferido em 21 de Maio de 2003, o Tribunal de Última Instância decidiu que “não pode deduzir o pedido de anulação ou de declaração de nulidade ou inexistência jurídica de actos relativos à formação e execução do contrato em cumulação com a acção sobre contratos administrativos quando não seja o mesmo tribunal competente para conhecer daquele pedido e da acção”, sendo o Tribunal de Segunda Instância competente para conhecer o recurso contencioso do acto praticado pelo Secretário para a Segurança.

    Verifica-se assim oposição entre os dois acórdãos sobre a mesma questão de direito.

    A regulamentação jurídica sobre a matéria não teve alteração substancial.

    E não há jurisprudência obrigatória fixada sobre a questão em causa.

    Estão preenchidos, portanto, os pressupostos para que se possa conhecer do mérito da causa.

    3.2. O regime de interposição do recurso contencioso cumulado com acção sobre contratos administrativos

    Nos termos da lei, é permitida a dedução, em acção sobre contratos administrativo, do pedido de anulação ou de declaração de nulidade ou inexistência jurídica de actos administrativos relativos à formação e execução do contrato, o que implica uma cumulação da acção sobre contratos administrativos com recurso contencioso de actos administrativos, o que decorre da estatuição do art.º 113.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, que prescreve o seguinte:

    “Artigo 113.º

    (Finalidade e cumulação de pedidos)

    1. A acção sobre contratos administrativos tem por finalidade dirimir os litígios sobre interpretação, validade ou execução dos contratos, incluindo a efectivação de responsabilidade civil contratual.

    2. O conhecimento da acção sobre contratos administrativos não impede o recurso contencioso de actos administrativos relativos à formação e execução do contrato.

    3. O pedido de anulação ou de declaração de nulidade ou inexistência jurídica de actos administrativos relativos à formação e execução do contrato pode ser deduzido, inicial ou supervenientemente, em acção sobre contratos administrativos quando aquele pedido e os formulados nos termos do n.º 1 estejam entre si numa relação de prejudicialidade ou de dependência ou quando a procedência de todos os pedidos dependa essencialmente da apreciação dos mesmos factos ou da interpretação e aplicação das mesmas normas jurídicas ou cláusulas contratuais.”

    E nos casos de cumulação de pedidos, prevista no n.º 3 do art.º 113.º, “aplicam-se à dedução do pedido de anulação ou de declaração de nulidade ou inexistência jurídica, bem como à sua discussão e decisão, as normas que regulam o recurso contencioso quando se não revelem incompatíveis com as aplicáveis à tramitação da acção” (n.º 5 do art.º 99.º do CPAC).

    Daí que, não obstante ser deduzido na acção sobre contratos administrativos, o pedido de anulação ou de declaração de nulidade ou inexistência jurídica de actos administrativos relativos à formação e execução do contrato, bem como a sua discussão e decisão, segue-se pelas normas que regulam o recurso contencioso, desde que não haja incompatibilidade com as normas aplicáveis à tramitação da acção.

    3.3. O caso vertente

    No caso vertente, estão em causa um recurso contencioso interposto dum acto administrativo praticado pelo Chefe do Executivo, que é da competência do Tribunal de Segunda Instância (art.º 36.º, alínea 8), subalínea 1) da Lei de Bases da Organização Judiciária), e uma acção sobre contrato administrativo, sendo o Tribunal Administrativo competente para a julgar.

    Será possível, por força do disposto no art.º 113.º n.º 3 do CPAC e independentemente da distribuição de competências entre o Tribunal de Segunda Instância e o Tribunal Administrativo, a interposição de recurso contencioso na acção sobre contrato administrativo, cabendo ao Tribunal Administrativo para conhecer de todos os pedidos, tal como foi decidido no Acórdão recorrido?

    Não se nos afigura que sim.

    Na tese do Acórdão recorrido, o único pressuposto da cumulação de pedidos previsto no n.º 3 do art.º 113.º do CPAC prende-se com a existência de relação de prejudicialidade ou de dependência entre os vários pedidos, ou a situação de a procedência de todos os pedidos depender essencialmente da apreciação dos mesmos factos ou da interpretação e aplicação das mesmas normas jurídicas ou cláusulas contratuais, não se estabelecendo qualquer restrição respeitante à competência do tribunal.

    É verdade que na norma citada não se faz nenhuma referência à competência do tribunal.

    No entanto, é de salientar que nem por isso se pode pôr ao lado outras normas aplicáveis que regulam a cumulação de pedidos.

    Ora, nos termos do art.º 391.º n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicável por força do art.º 1.º do CPAC, “o autor pode formular cumulativamente contra o mesmo réu, num só processo, vários pedidos que estejam compatíveis, se não se verificarem os obstáculos fixados no artigo 65.º”.

    E estipula o art.º 65.º CPC o seguinte:

    “Artigo 65.º

    (Obstáculos à coligação)

    1. A coligação não é admissível quando o tribunal for incompetente para apreciar algum dos pedidos.

    2. A coligação não é também admissível quando aos pedidos correspondam formas de processo diferentes, salvo se a diferença provier do diverso valor dos pedidos.

    3. Quando aos pedidos correspondam formas de processo diferentes que não sigam uma tramitação manifestamente incompatível, pode o juiz autorizar a cumulação se nela houver interesse relevante ou a apreciação conjunta das pretensões for indispensável para a justa composição do litígio.

    4. Incumbe ao juiz, na situação prevista no número anterior, adaptar a tramitação processual à cumulação autorizada.

    5. Se o juiz, oficiosamente ou a requerimento de algum dos réus, entender que, não obstante a verificação dos requisitos da coligação, há inconveniente grave em que as causas sejam instruídas, discutidas e julgadas conjuntamente, ordena, em despacho fundamentado, a notificação do autor para indicar, no prazo fixado, o pedido ou os pedidos a apreciar no processo, sob pena de, não o fazendo, o réu ser absolvido da instância quanto a todos eles; se houver pluralidade de autores ou for feita a indicação, aplica-se o disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 66.º

    6. No caso previsto no número anterior, se as novas acções forem propostas dentro de 30 dias a contar do trânsito em julgado do despacho que ordenou a separação, os efeitos civis da proposição da acção e da citação do réu retrotraem-se à data em que estes factos se produziram no primeiro processo.”

    Daí decorre que a coligação não é possível se o tribunal for incompetente para apreciar algum dos pedidos ou aos pedidos corresponderem formas de processo diferentes, salvo quando a diferença provier do diverso valor dos pedidos.

    No entanto, pode haver cumulação de pedidos a que caibam formas processuais diversas, desde que o juiz assim autorize e proceda à adaptação das tramitações processuais, nos termos dos n.os 3 e 4 do art.º 65.º, o que constitui uma excepção à regra prevista no n.º 2 do art.º 65.º.

    O n.º 3 do art.º 113.º do CPAC, ao permitir a dedução em acção sobre contratos administrativo do pedido próprio do recurso contencioso, representa assim mais uma excepção ao disposto no n.º 2 do art.º 65.º do CPC, atenta a diversidade de formas de processo que cabem aos diferentes pedidos, mas que se explica por razões de economia processual.

    Será que se pode considerar também como excepção ao n.º 1 do art.º 65.º do CPC, em termos da competência do tribunal?

    A resposta não pode deixar de ser negativa, precisamente porque não existe norma expressa que preveja a cumulação de pedidos nos casos em que são diferentes os tribunais competentes, o que sucede no nosso caso concreto, em que a acção sobre contratos administrativos é da competência do Tribunal Administrativo e o recurso contencioso é da competência do Tribunal de Segunda Instância, dado que o acto administrativo impugnado foi praticado pelo Chefe do Executivo (ou por um dos Secretários do Governo).

    Como é sabido, a distribuição de competência entre vários tribunais em razão da hierarquia e da matéria é uma questão de ordem pública, prevista na Lei de Bases da Organização Judiciária, cujas regras não podem ser derrogadas sem norma expressa, por estar em causa um princípio de ordem pública.

    Por outro lado, não resulta do art.º 24.º do CPAC que seja possível a cumulação quando a competência para os dois meios processuais caiba a tribunais diversos.

    “Artigo 24.º

    (Cumulação de pedidos)

    1. Qualquer que seja o tribunal competente, pode cumular-se no recurso contencioso:

    a) O pedido de determinação da prática de acto administrativo legalmente devido quando, em vez do acto anulado ou declarado nulo ou juridicamente inexistente, devesse ter sido praticado um outro acto administrativo de conteúdo vinculado;

    b) O pedido de indemnização de perdas e danos que, pela sua natureza, devam subsistir mesmo em caso de reposição da situação actual hipotética obtida através do provimento do recurso.

    2. Nas hipóteses previstas no número anterior, aplicam-se à dedução dos pedidos de determinação da prática de acto administrativo legalmente devido e de indemnização de perdas e danos, bem como à sua discussão e decisão, as normas que regulam as correspondentes acções quando se não revelem incompatíveis com as aplicáveis à tramitação do recurso contencioso.”

    A razão de ser desta norma é semelhante à do n.º 3 do art.º 113.º do CPAC, permitindo a cumulação de pedidos por razões de economia processual, operada no âmbito do recurso contencioso.

    Ora, não obstante a utilização da expressão “qualquer que seja o tribunal competente”, não se nos afigura possível a cumulação de pedidos que devem ser conhecidos por tribunais diversos.

    O que a norma diz é que qualquer que seja o tribunal competente, Tribunal Administrativo, Tribunal de Segunda Instância ou Tribunal de Última Instância, pode operar-se a cumulação de pedidos, desde que, naturalmente, caiba ao mesmo tribunal a competência para conhecer de todos os pedidos, em virtude de a competência dos tribunais em razão da hierarquia e da matéria ser de ordem pública.

    Assim entendendo, não se vê a diferença de tratamento jurídico no que tange às soluções dadas à cumulação de pedidos em acção sobre contratos administrativos (art.º 113.º do CPAC) e no âmbito do recurso contencioso (art.º 24.º do CPAC).

    Concluindo, é de julgar procedente o recurso, revogando o Acórdão recorrido na parte ora impugnada.

    4. Decisão

    Face ao exposto, acordam em julgar procedente o recurso e:

    A) Revogam o Acórdão recorrido na parte impugnada no presente recurso;

    B) Uniformizam a jurisprudência, nos termos do al. 1) do n.º 2 do art.º 44.º da Lei de Bases da Organização Judiciária e do n.º 4 do art.º 167.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, fixando o seguinte entendimento:

    Não é possível a cumulação de pedidos prevista no art.º 113.º n.º 3 do Código de Processo Administrativo Contencioso se para os respectivos pedidos forem competentes tribunais de grau hierárquico diverso, pelo que o Tribunal Administrativo não tem competência para conhecer do pedido, deduzido em acção sobre contratos administrativos, de anulação ou de declaração de nulidade ou inexistência jurídica de actos administrativos relativos à formação e execução do contrato, cujo julgamento em primeira instância cabe ao Tribunal de Segunda Instância.

    Custas pela recorrida Companhia de Obras de Decoração Yut Hoi Limitada.

    Após trânsito em julgado, publique o presente Acórdão no Boletim Oficial.

    Macau, 1 de Julho de 2015.

    Juízes: Song Man Lei (Relatora)

    Sam Hou Fai

    Viriato Manuel Pinheiro de Lima

    Lai Kin Hong (Vencido nos termos do Acórdão recorrido.)

    Choi Mou Pan (Concordo com a parte da decisão quanto à existência da oposição das decisões, e quanto à questão de fundo, mantenho-me a posição assumida no acórdão do processo n.º 410/2012 deste TSI.)

    O Magistrado do Ministério Público presente na conferência:

    Mai Man Ieng


        

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